sexta-feira, dezembro 18

8-)

O suicida é um ator em pelo menos dois sentidos. Primeiro: aquele que age, aquele que executa uma ação. Segundo: aquele que atua, aquele que cria uma farsa. Todo suicida precisa pensar em um desenrolar da história, ápice e morte do personagem, reação do público e nos elementos do cenário. Ele é seu próprio diretor e espera que este seja o seu último espetáculo.


[Triiiiiiimmmmmmmmmmm...]

Quantos dos suicidas podem imaginar o ridículo do seu ato? Um conjunto gestual tantas vezes executado, provavelmente das mais diferentes maneiras possível. E é exatamente o sujeito depressivo, aquele que tem extremo asco do cotidiano, que irá executar um dos grandes cotidianos da sociedade.


[Triiiiiiimmmmmmmmmmm...]

O ridículo de se matar. Todo suicida precisa quebrar uma grande barreira – a da auto sobrevivência - para colocar a sua apoteose em prática. Se é católico, será recebido no inferno pelo pecado de tirar a própria vida. Se é ateu, acha que vai desaparecer, voltar a ser pó de estrela. Se é espírita, voltará como um inseto ou outra forma de vida, a fim de melhorar seus níveis kármicos.


[Triiiiiiimmmmmmmmmmm...]

Então vamos supor que eu sofra de depressão. Conseguem imaginar? Tenho a sensação de que sou a causa de todos os problemas do mundo. Sinto a garganta queimar e as glândulas lacrimais sensíveis. Entra o VT em preto e branco - eu apenas atraso a vida deles, sou o máximo de medíocre que alguém pode ser. Vou trabalhar a vida inteira, chegando em casa e gastando o resto do tempo em filmes e internet, ver meus amigos aos fins de semana, até envelhecer e morrer. Não quero isso, eu não sirvo para nada, só faço as pessoas infelizes (ou as faço feliz e sigo na minha infelicidade). Não, isso é apenas um mal-estar bioquímico do meu cérebro. Não! Eu realmente não sirvo para nada. Tela preta, texto em off – a depressão ficou verossímil? Não?


[Triiiiiiimmmmmmmmmmm...]

Continuando, nessa crise depressiva eu resolvo cometer um suicídio. Começo a planejar os detalhes. Plot: guria na sala com overdose de remédios para dormir. Desenrolar da história: acordo, cumprimento todos, saio para facul, vou e volto quando já tiverem saído. Tomo os remédios e espero. É quarta-feira, dia que ninguem ta em casa a noite a não ser eu, e que a vizinha vai a uma reunião demorada. Cenário: a sala. Um ambiente comum e associado com a união familiar. Uma contradição interessante: uma morte em que se crê que a pessoa não recebeu atenção o suficiente, concretizada onde qualquer um da casa tem acesso - e o paradigma diversão-morte. Será que meus pais voltarão a usar a sala novamente? Será que mudarão de casa? Seria bom, eles vivem reclamando mesmo. Pelo menos o meu fim vai servir para alguma coisa. Nesse dia eu apenas resolvo me matar, sem realizar a decisão, porque a crise passa logo após eu chegar em um ambiente público e as pessoas começarem a puxar assunto comigo. É como se por alguns momentos me tivessem tirado de um quarto escuro.


[Triiiiiiimmmmmmmmmmm...]

É provável que na próxima crise eu resolva de fato concretizar a minha vontade e a execute nos dias consecutivos.


[Triiiiiiimmmmmmmmmmm...]

Finjo que vou na casa de alguém e dou uma volta pelo quarteirão. A farsa dentro da farsa ritual do suicídio. A cada passo, ouço os comprimidos do remédio para dormir batendo uns nos outros. É uma cadência de samba triste. Será que sempre ficamos mais poéticos nesses momentos? Chego em casa e me enfio no banheiro (porque somos ensinados que o suicidio começa no banheiro). Me olho no espelho e me encaro algumas vezes. Como pode algo assim estar vivo? Como as pessoas me suportaram até agora? Encho a mão esquerda em concha com comprimidos, enfio todos na boca e começo a mastigá-los. São amargos como a existência. Vou em direção à sala. O coração disparado, as pernas moles. É como se mil surdos rebombassem dentro de mim. Volto... Esqueci de pegar minha carta esquecida. “A carta”, uma das coisas mais importantes. Queria estar com ela toda amassada e rabiscada, dar trabalho para decifrarem minha última mensagem. Será que conseguirei mudar o mundo de alguem com o que está escrito nela? Será quê...minhas pernas ficam fracas demais para me sustentar de pé. Caio de lado. (Devo estar parecendo um peixe, penso.) Sinto o sono mais pesado da minha vida. Morro. Morro no lugar errado. Antes de chegar no meu palco-aquario. Morri na coxia. O que era para ser apenas ridículo, foi pior. Por mastigar os comprimidos - e muitos deles -, tive uma parada cardíaca – foi muito mais rápido do que esperava. Pelo menos concretizei o objetivo final do plano. Enquanto isso, a secretária gravava algum recado.


[Olá, você ligou para ****-****, no momento não podemos entender...biiiip.]